Orã é uma cidade comum.
200 mil habitantes. Os moradores de Orã estão apenas preocupados em como ganhar
dinheiro. Suas preocupações não vão além do quanto ganham. Praticamente são
insensíveis, não ligam para o próximo, apenas querem ganhar a vida de forma
tranquila e honesta. Eles nunca imaginariam que algo de ruim poderia acontecer
a todos eles. Estavam preocupados demais pensando em si mesmos. A cidade
portuária era uma cidade sem vida, pois não havia verde nas ruas. O narrador desta
crônica descreve a cidade como um lugar desprovido de beleza, vida e
sentimentos humanos. Porém os concidadãos, maneira como o cronista se refere aos moradores da cidade em terceira pessoa, veem um surto de ratos. Não apenas
ratos andando para lá e para cá, mas ratos saindo de seus buracos e morrendo à
vista de todos. Sempre em grupo. Muitos ratos mortos. Uma coisa surreal. Nas ruas,
ratos. Nas casas, ratos. Nas praças, ratos. A Prefeitura se encarrega de fazer
esta limpeza, recolhendo os cadáveres dos bichos. Eis o primeiro sinal de que
algo aconteceria com Orã e a vida de todos mudariam completamente.
Após este surto de
ratos morrendo por todos os lados, casos de enfermidades, com os mesmos
sintomas, aparecem. O primeiro a morrer foi o porteiro. Rieux, nosso
protagonista, um médico dedicado à profissão e que encara a doença da sua
esposa com esperanças de melhoras, começa a estranhar esses casos. Os sintomas
eram os mesmos, e pouco a pouco começaram a morrer mais e mais gente da mesma
doença. Não sabiam o que era, Rieux não suspeitava de que era a Peste que faria
a colheita durante um ano na relativa pequena cidade de Orã. Após muitos casos
de mortos, que apresentaram os mesmos sintomas, os concidadãos da cidade
começaram a perceber que algo de muito sério incomodaria suas vidas
individualizadas.
Quando a peste é,
enfim, reconhecida, o prefeito toma medidas profiláticas e depois fecha os
portões da cidade, exilando a todos em sua própria terra. Quem saiu não entrava
mais, quem entrou não saia mais, e quem ficou, idem. Rambert, jornalista que
não morava em Orã, foi um destes que ficaram exilados em uma terra estrangeira
a si mesmo. Com o exílio, veio a dor da separação. Os concidadãos começaram a
despertar do sono egoísta em que todos caíram. Sentimentos de ausência abalaram
a todos, pois o quão fora difícil ver o ser a quem amavam partir e não voltar. Começava
assim algo que derrubaria o forte individualismo que abatia sobre a cidade. Mas
até quando todos precisavam se unir, um forte desejo de salvar a si próprios
tomou-lhes. Pois com o perigo do contágio, muitos temiam contrair a peste ao
ficar próximo de alguém. Foram criadas medidas de quarentena, campos de
isolamento, tudo para frear a peste que avançava em seu furor. O número de
mortos crescia a cada dia. Mas a sensação era de que logo, em poucas semanas,
tudo isto acabaria. O fingimento perante uma tragédia que se abate sob todos
nós é mais forte do que a difícil tarefa de lidar com a realidade cruel.
Rieux é um homem
compreensível, nunca duvidou de que poderia salvar todos aqueles que estavam
sob seus cuidados. Sua mulher partira antes dos portões serem fechados, pois
iria para as montanhas se recuperar. Sozinho, mesmo com a ajuda de homens que
deram a si mesmos para deter a peste, lutava contra um mal que só crescia. Pois
a peste não olhava para cor da pele, classe social, gênero ou idade. Ela, nesse
sentido, era igualitária. Na morte, todos são iguais. Perante a morte, todos
nós somos iguais. Mas Rieux se aproxima de Tarrou, um homem com princípios e de
uma personalidade fortíssima. Sempre calado, Tarrou surpreende o leitor ao
fazer um desabafo a Rieux em um terraço com vista para toda a cidade. Esse desabafo
é emocionante, e nele há algo de compaixão e incompreensão, mesmo que seus
sentimentos sejam verdadeiros. Matar alguém é sempre algo abstrato. Mas quando
presencia a execução fria de alguém, com o rifle a pequenos passos do peito do
acusado, de modo que ali ficaria um enorme buraco, sua visão sobre condenar
alguém que tem vida, pois só se condena quem está vivo, muda. Prefere não
assassinar ninguém, e procura por algo que não sabe o que realmente é. Diante de
tanta dor, lemos uma cena sensível e muito bela. Rieux e Tarrou estabelece uma
amizade forte.
Outros personagens são,
até certo ponto, um enigma para o leitor. A exemplo de Cottard, que nas últimas
páginas saberemos quem é de fato. Grand, um homem sincero, que sofre por uma
separação ainda não esquecida. O juiz Othon, para quem tudo deve ser feito com
a mais perfeita ordem, e que trata os filhos insensivelmente, acaba amolecendo
o coração e tendo que enfrentar na pele o que a vida tem de valor, o que
realmente importa. Assim como os demais, que não citarei nessa resenha, mas que
lutam contra a peste física e a peste que cada um carrega consigo. Pois não
seria a indiferença, a falta de misericórdia, o materialismo doentio que
acomete o homem moderno, o desejo de poder e de sempre ter mais, ganhar mais, o
individualismo egoísta, não seria essa uma peste que deveria ser combatida por
todos nós? Discordo de certo personagem que diz que o homem tem o coração bom. Não,
o homem não tem o coração bom. E seria isso também uma peste?
Mesmo com todo o
sofrimento que os moradores de Orã enfrentaram, ainda assim eles permaneceriam
indiferentes. Não aprenderiam nada com a dor, o sofrimento, a morte. Esqueceriam
dos cadáveres incinerados, jogados aos montes em um buraco, da dor da
separação, esqueceriam de tudo o que sofreram para dar continuidade a suas
vidas voltadas para si mesmos, sem se importar com a dor do próximo, com a dor
do outro, a nossa dor. Há no homem algo que ele não poderá mudar. E é esta
inclinação a olhar para si mesmo, satisfazes os seus desejos, a pensar que o
mundo apenas gira em torno de si. Como humanos, falhamos inúmeras vezes. Não há
esperanças para nós, não em nós. Se quisermos nos livrar da nossa peste
existencial (espiritual?), deveríamos olhar além, olhar para cima, olhar para
fora de nós. O final de A Peste poderá ser feliz para alguns, mas para mim foi
extremamente triste. Desejei, confesso, que a peste voltasse com toda a força, que
aqueles homens aprendessem o que não aprenderam. Chorei a morte de alguns, e
tive uma aproximação muito grande com Rieux e Tarrou, homens admiráveis. “Na
verdade, ao ouvir os gritos de alegria que vinham da cidade, Rieux lembrava-se
de que essa alegria estava sempre ameaçada. Porque ele sabia o que essa
multidão eufórica ignorava e se pode ler nos livros: o bacilo da peste não
morre nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido nos móveis e
na roupa, espera pacientemente nos quartos, nos porões, nos baús, nos lenços e
na papelada. E sabia, também, que viria talvez o dia em que, para desgraça e
ensinamento dos homens, a peste acordaria os seus ratos e os mandaria morrer
numa cidade feliz.”
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