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Nascemos para morrer




Viver. Matéria difícil na escola da vida. O que estamos fazendo aqui? Qual a razão disso tudo? Por que sofro? Afinal, qual é o meu problema? São esses um dos assuntos abordados por Fernando Sabino em seu livro O Encontro Marcado. Eduardo Marciano é o protagonista desse romance existencialista/filosófico, até certo ponto niilista. Mas a narrativa não é niilista do começo ao fim, há sempre a figura do Divino nas dúvidas de Eduardo quanto à existência de Deus. Será que ele acredita em Deus? Durante sua jornada, que começa cheia de vida e esperança e aos poucos vai tornando-se solitária, vazia e mórbida, o protagonista só vai saber se Deus existe nas últimas páginas.

O que me levou a considerar O Encontro Marcado como o melhor livro nacional que já li, foi exatamente esses temas citados logo no início desse texto. É difícil ler um romance pessimista, digamos assim, mas que não é pessimista. É um paradoxo que quem leu entenderá. Eduardo, que queria ser escritor, toma rumos totalmente distintos e foge da sua vocação. Diante de dificuldades financeiras, como poderia largar tudo e viver só da escrita? Apesar de ganhar um concurso de contos na adolescência, percebe que a vida de escritor não daria os frutos (dinheiro) desejados. Junto com Mauro e Hugo, seus melhores amigos, Eduardo começa a descobrir o que é a vida e, em meio à várias mudanças ideológicas, vai aprendendo o significado de o que é viver e seu vazio, anseio pela morte, só aumenta. Ele tem bons pais, é talentoso não só como escritor, mas como nadador — bate o recorde de sua cidade mineira, o que o torna campeão —, sabe amar e tem relacionamentos conflituosos, mas acaba se acertando com Antonieta e casa-se com ela. Mas sempre falta algo, aquele vazio que precisa ser preenchido e que o deixa pessimista em relação à vida.

Quando pequeno, Eduardo costumava ser uma criança agitada e esperta. Os pais sabiam que o filho era dotado de uma grande inteligência, o que os deixavam apavorados (“Este menino é mesmo esquisito”, convenceu-se seu Marciano). O início do livro já arrebata o leitor para uma trama, uma história, que trará aventuras e reflexões profundas. A morte apresenta-se ao menino Eduardo logo cedo, quando sua galinha de estimação, a Eduarda, é morta e servida no almoço. Logo depois, a morte também faz outro contato com Eduardo, busca alguém próximo a ele e a partir de então Eduardo já não é o mesmo. Ele tem que lidar com a morte diversas vezes, e me pergunto se isso não o teria levado a adotar uma visão niilista do mundo. Afinal, o mundo era um caos e tudo acabava com a morte. Nascemos para morrer, disso ele sabia.

Considerado como um romance de geração, Fernando Sabino expressou nas páginas do livro o que os jovens daquele tempo sentiam. Foi um sucesso absoluto quando O Encontro Marcado foi publicado, e me preocupa, de certo modo, em saber que o autor não é lido pelos jovens dos dias atuais. Sim, o livro é da década de 50 mas permanece atual. Vivemos em dias onde a maioria pensa que viverão para sempre, ou não querem pensar que suas vidas serão breves. A morte é um tema intocável, horrível e indizível. “Morrer? Não, não quero pensar nisso. Deixa-me viver o máximo que eu posso, não quero pensar na morte.” Mas pensar na morte é pensar sobre a vida, e em como fazer os nossos dias valerem a pena. Porque vivemos para morrer. “Havia mistério em tudo, alegria da infância era apenas lembrança. De súbito, a morte estava para abater-se sobre ele a qualquer momento.” Sim, quem nunca já sentiu algo parecido? A história de Eduardo é a história de todos Eduardos, e Antônios, e Brunas, e etc. A história de Eduardo é a minha e a sua, pois todos passamos pelas situações que ele passou. Dúvidas, receios, angústias, medos, pessimismo, falta de fé. Quem nunca se perguntou onde estava Deus? Se ele realmente existia? Sim, somos humanos e até os mais devotos já tiveram momentos assim. Não é nenhum crime e nenhum pecado. Mas temos que alcançar a redenção, assim como Eduardo. A cosmovisão de Fernando Sabino em O Encontro é niilista, mas não por completo. Nessa cosmovisão há espaço para o mistério, a provisão divina, a humildade, o amor.

Há metalinguagem, também. Citações de poetas, diálogos sobre o ofício da escrita e reflexões sobre o mundo da literatura. “Pobreza, fome, miséria — tudo era preciso, para tornar-se escritor.

Como já escrevi, a morte é um dos temas mais recorrentes na trama. Para Eduardo, o seu tema habitual era: “O tempo em face da eternidade. Caminhamos para a morte. O futuro se converte, a cada instante, em passado. O presente não existe. Vivemos a morte desde o nascimento.” Deus é uma figura distante, quase invisível, na trama. Eduardo pensa nEle, busca a redenção. Mas não sabe se acredita ou não. Mas apesar da morte ser, para Eduardo, presente em nossas vidas desde que nascemos, ele achava abjeto uma coisa: matar quem ainda não viveu. “[...] Matar não é tão grave como impedir que alguém nasça, tirar sua única oportunidade de ser. O aborto é o mais horrendo e abjeto dos crimes. Nesse ponto, Job estava completamente enganado: nada mais terrível do que não ter nascido.” Mas ironias das ironias, afinal a vida prega essas peças, o aborto instantâneo mata seu primeiro filho. E também o segundo. Nada mais terrível do que não ter nascido.

Mas o que Eduardo não tem, é a esperança de viver. Entregou-se ao abismo, mas luta para sair de lá. Mesmo suas ações sendo contrárias às suas palavras, Eduardo tenta encontrar sentido nisso tudo. Só não compreende que o sentido da vida está acima de nós, esse sentido transcende a tudo. “A vida me esmaga, sou escravo de horários, não sou dono de mim, não sei mais de onde vim nem para onde vou.” Pobre Eduardo, mas ainda há uma luz no fim do túnel e para lá que ele se dirige, mesmo que após ter destruído a si mesmo e afastado todos que o conheciam. Ironia das ironias, Eduardo — homem bom, humilde — aceitou o convite de um amigo de infância que era Monge e foi passar alguns dias ao seu lado. O encontro que havia marcado há tantos anos, quando ainda estavam no ginásio — ele, Mauro e Domingos —, acabava de acontecer. Mas só ele e Domingos, o monge, foram ao encontro.


Dizer o indizível? O silêncio é a linguagem de Deus. A linguagem do homem difícil, retorcida, suja, atormentada. Tudo que se escreve é apenas uma paródia do que já está escrito e ninguém é capaz de escrever. Tudo que se vê é apenas uma projeção do que não se vê, sua verdadeira natureza e substância. Basta olhar para as minhas mãos para sentir que elas ocupam o lugar das mãos de Deus...” E Deus falava à Eduardo o tempo todo, mas ele não ouvia. 

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