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O Pássaro do Bom Senhor narra os conflitos entre abolicionistas e escravistas de forma bem humorada


No século XIX, os Estados Unidos viviam com a instituição infernal da escravidão. E é nesse contexto em que James McBride tece a história de Henry Shackleford, a Cebola, como mais tarde viria a ser chamado. Assim como todas as pessoas de cor naquela época, Henry “Cebola” era escravo. Mas quis o destino que o Velho John Brown, um branco devotado à causa abolicionista, aparecesse na barbearia do dono de Cebola. Todos já o conheciam como o “Velho” e o temiam por sua famosa truculência aos escravistas. Depois de causar um grande alvoroço na barbearia do Holandês, o pai de Cebola é morto e o Velho John Brown, que não percebe que aquela criança de cor é um menino, a sequestra, ou como o Velho sempre diz, a livrou da escravidão. A partir daí, o menino que agora é menina, a Cebola, se torna um amuleto para John Brown, que a leva para todas as missões que tem como objetivo libertar os negros. O humor é um dos elementos que torna a leitura prazerosa e instigante. E o mais surpreendente é os relatos dos negros em relação a toda essa confusão que os brancos decidiram no lugar deles. A narrativa é do já ancião Henry Shackleford, que revive um passado cheio de conflitos, descobertas, traições e alegrias. 

“A verdade é que mentir era algo natural pra todos os negros durante a escravidão, já que nenhum homem ou mulher aprisionado podia prosperar dizendo o que pensava ao patrão. Grande parte da vida de uma pessoa de cor era uma encenação, e os negros que cortavam lenha e não abriam a boca viviam mais tempo. Eu não iria, então, dizer que era um menino.” (pág. 34)

E é assim que Henry, a Cebola, acha um modo de sobreviver durante aqueles tempos infernais. Já que, sendo menina, não podia trabalhar duro ou ir combater com o grupo do Velho, ele preferia ser uma “frutinha”. Apesar de ser esperto, o Velho não percebia que aquela menina na verdade era um menino, ou não fazia questão de saber. Cebola havia se tornado uma espécie de bom agouro, um amuleto da sorte. Protegia a criança de tudo e depositava toda a sua confiança na menina Cebola. E isso deixava Cebola com a consciência pesada, mas não abriria mão de uma vida segura como a que estava levando ao lado de John Brown. Mas o que lhe deixava tão perturbado era a fervorosa — até fanática — devoção do Velho à Deus. Dizia que o Criador lhe incumbira de tal missão, a de libertar os negros, e que faria tudo como Ele lhe havia revelado. Fazia sermões durante horas, orações extensas — o que deixava não só Cebola entediada, mas aos filhos e alguns abolicionistas que o seguiam. Em sua loucura, o Velho fazia questão de que todos recebesse Jesus no coração. Mas Cebola não queria saber de Jesus e todo aquele papo de Bíblia, pois pensava em coisas, digamos assim, mais carnais. Conforme a idade ia passando, a adolescência vinha chegando, o menino estava à flor da pele e seus desejos sexuais eram impossíveis de esconder. Seu primeiro amor, Pie, uma mulata prostituta, dilacerou seu coração. Mesmo sendo tão novo, o amor não se importou. Estava apaixonado por uma mulher mais velha. 

Acompanhamos o crescimento de Cebola, suas questões sobre todo aquele negócio de abolição, e chegava à conclusão de que não se importava com o futuro dos negros, sua gente.  Importava-se só com o próprio umbigo e os outros que morram sendo escravos. Ele achava engraçado o fato de os brancos se importarem mais com a liberdade dos negros do que os próprios negros. É verdade que existia um aqui, outro ali, que se importava com o futuro de sua gente. Mas eram poucos, e desses que escrevia sobre o absurdo da escravidão e que sonhavam com a liberdade de seus irmãos, que se preciso fosse pegar em armas para garantir o fim da instituição infernal, como chamavam a escravidão, só o faziam em teoria, com discursos belos e nada práticos. Quando chega o momento de lutar ao lado do Velho John Brown e começar uma revolução abolicionista, esses mesmos que discursavam e afirmavam que lutariam se preciso fosse, não dava as caras, pois simplesmente queria tirar o seu da reta.

O livro não carrega frases de efeito sobre o racismo, muito menos abraça o politicamente correto. O autor não optou por esse caminho — o de colocar toda a culpa no homem branco e vendê-lo como o único vilão dessa história. É claro que os brancos têm culpa, mas isso não exime os negros de sua parcela também. É o que está no livro. E muitos dos diálogos entre os negros são carregados do humor politicamente incorreto e que faz os negros rirem da própria situação e de si mesmos.

“Os negros podem ter várias cores. Escuro. Preto. Mais preto. Muito mais preto. Mais preto que a noite. Preto como o inferno. Preto como piche. Branco. Claro. Mais claro. Muito mais claro. Mais claro que a luz. Branco como o sol. E quase branco. Veja só eu, por exemplo. Minha pele tem um tom marrom. Já você, por outro lado, quase branca, formosa, o que é um terrível dilema, não é mesmo?” (pág. 206)



Tenho a leve sensação de que os membros dos coletivos e as pessoas da esquerda vão odiar ter que ler esse livro, pois é um relato que apresenta-nos a situação dos negros sendo tratado como simples mercadorias, o que é terrível, mas que não apela para o vitimismo tão presente nos dias atuais. Não sei se li no livro ou em outro lugar, mas tem uma afirmativa que é mais ou menos assim: Você pode sair da senzala, mas se a senzala não sair de você, serás escravo por toda a vida”. E é exatamente isso o que acontece hoje em dia, e O Pássaro do Bom Senhor vem resgatar o senso de humor para um povo (a minoria, ainda bem!) que não sabem mais rir de si mesmos e de enxergar a vida sob uma ótica livre, sem rótulos ou cobranças sobre um tempo que não viveu. Ao escrever esse livro McBride tentou resgatar a figura de um dos homens brancos que acenderiam a chama para a causa abolicionista. E a mensagem que aprendi no final do livro, depois de todo mar de sangue derramado e nenhum êxito, foi de que a maior revolução é a das palavras. E foi escrevendo cartas que John Brown ficou ainda mais famoso pela causa abolicionista. Vencedor do National Book Award de 2013, O Pássaro do Bom Senhor é de um humor e sensibilidade ao mesmo tempo, o que o torna tão brilhante.

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