Pular para o conteúdo principal

O Rei do Inverno, de Bernard Cornwell

Meu primeiro contato com Bernard Cornwell foi através da trilogia As Crônicas de Artur (As Crônicas do Senhor da Guerra, em tradução livre do título em inglês). Recordo-me de ter visto o nome de Cornwell quando passava aleatoriamente por blogs literários, mas nunca tinha parado para pesquisar sobre ele ou sua obra, e o que me atraiu verdadeiramente nessa coleção foi o preço, quando encontrei os três livros por R$ 39,90. As Crônicas de Artur contam a história do rei mais famoso da Inglaterra, de uma maneira nunca vista antes.




A grande característica da obra de Cornwell é a ficção histórica e o próprio autor faz questão de deixar claro para o leitor quais das informações apresentadas em suas histórias são frutos de  pesquisas acadêmicas e quais são resultado apenas de sua imaginação. O Rei do Inverno, primeiro livro da trilogia, se passa em cerca de 480 d. C., após a queda do Império Romano, que havia deixado fortes impressões - da construção de magníficas cidades à introdução do cristianismo - na região que à época se chamava Britânia.
"(...) São as histórias dos últimos dias antes que a escuridão baixasse sobre a terra que chamamos de Lloegyr, que significa Terras Perdidas, o país que um dia foi nosso, mas que nossos inimigos agora chamam de Inglaterra." (O Rei do Inverno, p. 15)

A história é narrada em primeira pessoa por um velho monge, chamado Derfel Cadarn, que em sua juventude foi um guerreiro nascido saxão, sobrevivente de um ritual de sacrifício humano, vindo a se tornar pupilo do mago Merlin e, mais tarde, homem de confiança de Artur. 

 
Derfel Cadarn por João Machay


Derfel (pronuncia-se Dervel) escreve a narrativa a pedido de sua rainha, Igraine de Powys, entusiasta da história de Artur, embora nem sempre os escritos do monge a agradem, uma vez que ela está acostumada à versão "Camelot" dos fatos: a versão romântica. Este lado da história, porém, afirma Derfel, não passa de canções inventadas por bardos, em troca de algum ouro, as quais ninguém se preocupou em desmentir.

Derfel é uma das personagens mais cativantes e bem construídas que já tive o privilégio de ler, pois, apesar de ser um guerreiro treinado em combate, é muito inteligente, sensível e leal, não hesitando em por a si mesmo em perigo para proteger aqueles que lhe são queridos (sim, confesso, eu me apaixonei por ele).

Os saxões, povo entre o qual Derfel nasceu, eram uma ameaça para os povos britânicos, desembarcando em número cada vez maior nas costas da ilha, tomando o domínio das terras e matando seus ocupantes à medida que avançavam para o interior do território. Não obstante, tendo morrido o Grande Rei Uther, aquele que mantinha os reinos britânicos unidos, e deixado como herdeiro apenas seu neto Mordred, um bebê aleijado, a Britânia tornava-se um caldeirão fervente e a qualquer momento os reinos poderiam entrar em guerra uns contra os outros.

Esse é o contexto de O Rei do Inverno, em que Artur, filho bastardo de Uther, luta para manter a Britânia unida, de forma a resistir às investidas saxônicas, ao mesmo tempo em que se encarrega de defender e governar o reino de seu sobrinho Mordred, enquanto ele não tem idade para tanto. 

A narrativa de Cornwell apresenta personagens das quais todos ouvimos falar, como Morgana, Merlin e Guinevere, mas de uma forma totalmente nova, explorando suas forças e fraquezas, mostrando ao leitor extrema humanidade no passar das páginas, fazendo-nos oscilar do ódio à admiração, muitas vezes com um toque de humor, como nesse excerto:

"Hoje está frio. (...) Teremos neve antes do anoitecer, mas Sansum certamente nos recusará a bênção de um fogo aceso. (...) Agora estou velho, mas Sansum, que Deus ainda lhe dê muitos anos, é ainda mais velho, de modo que não posso usar a idade como argumento para destrancar o depósito de lenha."
(O Rei do Inverno, p. 15)

Até o próprio Artur, idealizado por muitos, inclusive por Igraine, é apresentado por Derfel como um homem sujeito a falhas, especialmente quando se trata de sua paixão por Guinevere, a despeito de seu grande talento como estrategista na guerra. O fato de Derfel não ser mero espectador, mas parte ativa das batalhas e amigo íntimo de Artur dá um toque inigualável à descrição dos fatos e das características das personagens.

Como o autor deixa registrado, antes do início da narrativa, quais dos locais mencionados na história são reais, para mim foi inevitável parar a leitura em certos pontos para pesquisar imagens dos mesmos. Ynys Wydryn, por exemplo, o Tor de Merlin, onde Derfel passou parte da infância e juventude, fica em Glastonbury, Somerset, e as características essenciais da descrição de Cornwell sobre o lugar são perceptíveis mesmo na imagem atual.

 Ynys Wydryn

O Rei do Inverno é uma narrativa fantástica, repleta de misticismos, romances, traições e batalhas épicas, protagonizados por personagens com características essencialmente humanas. É o início da história de Artur, o senhor das guerras e o rei que nunca usou uma coroa. O livro prende o leitor do início ao fim. Tome seu lugar na parede de escudos e prepare-se para o confronto.

"A luz da tarde se esticava pelo vale, tocando as árvores com a primeira e débil luz amarelada do sol daquele dia longo e sangrento, enquanto parávamos em volta do povoado. Estávamos ofegantes, e nossas espadas e lanças grossas de tanto sangue." 
(O Rei do Inverno, p. 527)






Comentários

  1. "A grande característica da obra de Cornwell é a ficção histórica e o próprio autor faz questão de deixar claro para o leitor quais das informações apresentadas em suas histórias são frutos de pesquisas acadêmicas e quais são resultado apenas de sua imaginação.". Caramba, adorei isso. Não conhecia o livro. Obrigada pela dica! *_*

    Beijos,
    http://postandotrechos.blogspot.com.br/

    ResponderExcluir
  2. Cornwell é fora de série, essa trilogia vai ficar pra sempre na minha memória, e espero um dia ter uma oportunidade de relê-la, já que a fila atual é muito grande.

    O destino é inexorável, como diria Merlin.

    http://desbravandolivros.blogspot.com.br/

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Leia o conto "O Gato Preto", de Edgar Allan Poe

Não espero nem peço que acreditem nesta narrativa ao mesmo tempo estranha e despretensiosa que estou a ponto de escrever. Seria realmente doido se esperasse, neste caso em que até mesmo meus sentidos rejeitaram a própria evidência. Todavia, não sou louco e certamente não sonhei o que vou narrar. Mas amanhã morrerei e quero hoje aliviar minha alma. Meu propósito imediato é o de colocar diante do mundo, simplesmente, sucintamente e sem comentários, uma série de eventos nada mais do que domésticos. Através de suas consequências, esses acontecimentos me terrificaram, torturaram e destruíram. Entretanto, não tentarei explicá- los nem justificá-los. Para mim significaram apenas Horror, para muitos parecerão menos terríveis do que góticos ou grotescos. Mais tarde, talvez, algum intelecto surgirá para reduzir minhas fantasmagorias a lugares-comuns – alguma inteligência mais calma, mais lógica, muito menos excitável que a minha; e esta perceberá, nas circunstâncias que descrevo com espanto

O Cavalo e seu Menino, de C. S. Lewis

O terceiro livro de As Crônicas de Nárnia em ordem cronológica, O Cavalo e seu Menino, narra a história de duas crianças fugindo em dois cavalos falantes. Shasta vive em uma aldeia de pescadores e vive como se fosse um empregado do seu pai ‘adotivo’, Arriche. Quando um tarcãa chega à aldeia e pede para se hospedar na casa de Arriche, este aceita sem hesitar. Com um hóspede nobre, o pescador coloca Shasta para dormir no estábulo junto com o burro de carga, tendo como comida apenas um naco de pão. Arriche não era um pai afetivo, acho que ele nem se considerava pai do menino. Via mesmo ali uma oportunidade de ganhar mais dinheiro, e quando o tarcãa oferece uma quantia por Shasta, ele ver que pode arrancar um bom dinheiro com a venda do menino e assim começam a barganhar um preço pelo garoto. Ao ouvir que o seu ‘pai’ iria lhe vender, o menino decide fugir e ir para o Norte — era o seu grande sonho conhecer o Norte. Ao se dirigir ao cavalo, e sem esperar nada, desejar que o animal fa

Três ratos cegos e outros contos, Resenha do Livro

Três ratos cegos Três ratos cegos Veja como eles correm Veja como eles correm Correm atrás da mulher do sitiante Que seus rabinhos cortou com um trinchante Quem terá tido visão tão chocante Como três ratos cegos . Três ratos cegos e outros contos é a mais importante compilação de contos da literatura policial. Agatha Christie escreveu a história que  deu origem a peça teatral mais encenada de todos os tempos 1 . Nesse livro, que traz nove contos maravilhosos, Agatha escreve com maestria as histórias mais incríveis para todos os amantes da literatura policial. O primeiro conto, Três ratos cegos, traz um intrigante caso de assassinato em série. Giles e   Molly se casaram recentemente e se mudaram para o casarão da falecida tia de Molly. Com uma ideia de transformar a enorme casa em hospedaria, ela convence Giles e os dois agora são donos de uma Hospedaria.