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O mal de se sentir inteligente lendo Harry Potter e Guerra dos Tronos


Recentemente, por conta de uma de minhas listas para a Revista Bula, fui xingado e ameaçado fisicamente das formas mais criativas imagináveis, simplesmente porque afirmei a obviedade de que “Guerra dos Tronos” e “Harry Potter” podem, eventualmente, ser interpretadas como imitações de “O Senhor dos Anéis”. Aparentemente nada demais, porém, essa simples opinião ofendeu profundamente alguns milhares de pessoas, gerando revolta, gritos e ranger de dentes. A maior parte dos belicosos ofendidos foram adolescentes e jovens adultos. Nada de novo no front. Os jovens costumam se levar muito a sério e, em consequência, levam demasiado a sério aquilo que gostam no momento e enquanto gostam. Não raramente é entusiasmo passageiro, o que não diminui em nada seu ardor. Não se furtam em entrar em verdadeiras batalhas campais (ou virtuais) para defender suas músicas, filmes, artistas, livros, novelas, times de futebol ou posições políticas preferidas. É mesmo essa a natureza das paixões.
Sempre foi assim, mas a prática acentuou-se desde que a adolescência foi inventada, ali por volta das décadas de 1950 e 1960, para capitalizar a popularidade de fenômenos culturais como Sinatra, Elvis e Beatles. Como ultimamente a juventude é cultuada (antes as filhas queriam se parecer com suas mães, agora as mães querem se parecer com suas filhas) e a adolescência estendeu-se até aos 30 ou 40 anos, testemunhamos a alvorada da era dos “fanboys” que “xingam muito no Twitter”, caracterizada pela defesa ardorosa e apaixonada de coisas que, no final das contas, são apenas produtos midiáticos pop. O que não é um problema em si, desde que não se perca de vista o senso de proporção. O que numa frase simples implica em saber que: “Guerra dos Tronos” pode até não ser um pastiche de “O Senhor dos Anéis”, mas, com certeza, jamais será um “Hamlet”.
Sim, os volumosos livros que compõem “As Crônicas de Gelo e Fogo” (genericamente chamadas pelos civis de “Guerra dos Tronos”) são divertidos, movimentados e parecem possuir certas pretensões artísticas, detectáveis sobretudo na opção pela narrativa a partir de diferentes pontos de vista. Contudo, apesar de seus inegáveis méritos, a saga de George R. R. Martin se insere em uma tendência que têm se mostrado nociva à formação literária das novas gerações. A tendência de fazer com que o leitor se sinta muito inteligente por estar lendo. Num olhar superficial parece positivo, mas pode ser perigoso.
A alta literatura não existe para agradar ou afagar egos. Ela desafia seus leitores, retira-os de sua zona de conforto, expandindo seu universo de pensamento. A grande arte não precisa fazer ninguém se sentir cabeça por estar diante dela. Muitas vezes ocorre o contrário: sentimo-nos estúpidos por não conseguirmos alcançar o pensamento ou as intenções de um grande artista. Quando isso ocorre, a culpa é sempre nossa, jamais do artista, se ele já passou pelo crivo do tempo e da história.
Infelizmente, pelo menos até onde consigo perceber, ocorre o inverso com “Guerra dos Tronos”.
Não que George R. R. Martin tenha obrigação de ser um gênio das letras. Ele é apenas um profissional competente que está fazendo seu trabalho e aproveitando os frutos dele. Muito justo! É ótimo que exista literatura de entretenimento. Ela cumpre um papel social importantíssimo. Tampouco comungo com a opinião de certos críticos que defendem que a fantasia, o horror, ficção científica ou os quadrinhos são gêneros necessariamente menores. Figuras como Kipling, C. S. Lewis, H. P. Lovecraft, Arthur C. Clarke, Isaac Asimov, Frank Miller ou Alan Moore, dentre muitos outros, comprovaram que narrativas originais e sofisticadas podem ser realizadas dentro desses formatos. O caso de “Guerra dos Tronos” é um problema de recepção. O fato é que parte considerável dos fãs está sacralizando o homem e a obra.
Recentemente, foi feita uma pesquisa entre os jovens perguntando-lhes quais seriam as personalidades que mais fariam falta se, porventura, morressem. Nada de estadistas, gênios científicos ou líderes espirituais nos primeiros lugares. O mais votado foi George R. R. Martin. A segunda colocada foi J. K. Rowling, autora de “Harry Potter”. Alguns podem achar que foi algum tipo de piada coletiva, como quando a religião Jedi, da saga “Star Wars”, apareceu numa enquete como a quarta crença mais praticada na Inglaterra, atrás do Cristianismo, Islã e Hinduísmo, ganhando do budismo e dos diversos tipos de espiritualismo. Discordo. Achei esse resultado sintomático e complementar.
Primeiro porque o sucesso de “Guerra dos Tronos” se deve em grande parte à lacuna de mercado deixada pelo fim da saga do bruxo Harry Potter. Prova disso é que Martin está escrevendo suas crônicas desde o início da década de 1990, mas apenas recentemente ela foi descoberta pelo grande público, destacadamente os adolescentes e jovens adultos. Justamente os viúvos da série de Rowling que, é preciso lembrar, cresceram junto com os personagens e tiveram sua formação literária fortemente influenciada por livros de fantasia. Nada de “Meu Pé de Laranja Lima” ou da Coleção Vaga-Lume, que alimentou a infância da Geração X. A Geração Z cresceu lendo sobre dragões, castelos e magia. E não quer parar.
Qual o problema disso? Não há nenhum, um pouco de imaginação não faz mal para ninguém, desde que se apure o gosto estético. Nem é preciso abandonar os velhos interesses, basta colocá-los em perspectiva. Posso estar enganado, mas o que tenho observado é que isso não está acontecendo. Principalmente porque o leitor médio de “Guerra dos Tronos”, tendo passado pelos ritos de formação de “Harry Potter”, acredita que agora sim está diante do auge da literatura ocidental. E se sentem muito inteligentes por isso. Não podem correr o risco de perder o mestre Martin, pelo menos até ele chegar ao final de seu evangelho literário. Que só pode ser uma obra-prima. Afinal, em “Harry Potter” havia amor, mas não havia sexo. Em “Harry Potter” havia briguinhas nos dormitórios e na sala dos professores, não intrigas palacianas. Em “Harry Potter” havia bullying, alguma violência e morte, mas não havia sadismo. Em “Harry Potter” o bem e o mal eram bem definidos, em “Guerra dos Tronos” os personagens orbitam em zonas cinzentas. Tudo, aparentemente, muito adulto, profundo e complexo. Comparando-se com a boa história infanto-juvenil de Rowling, realmente é. O que é suficiente para que muitos leitores de “Guerra dos Tronos” assumam ares catedráticos e ridicularizem as fanzocas de “Crepúsculo” e “Cinquenta Tons de Cinza”. O que não alcançam é que a mesma distância de qualidade que eles corretamente percebem entre os escritos de Martin e os rascunhos toscos de Stephenie Meyer e E. L. James é igualmente percebida por qualquer leitor mais experimentado entre o endeusado Martin e escritores de primeira linha como Saramago, García Márquez ou os brazucas Guimarães Rosa e Graciliano Ramos.
Esses fãs de “Guerra dos Tronos” podem não acreditar, mas esse mesmo sentimento de que “estou lendo um livro superinteligente” ocorreu muitas outras vezes. Como atuo no ensino superior desde 2002, testemunhei uma sucessão de “melhores livros de todos os tempos da última semana”. Lembro-me particularmente de um aluno do curso de Arquitetura e Urbanismo que ficou fascinado pelo hoje semiesquecido “O Código Da Vinci”, de Dan Brown. Acreditem ou não, “O Código Da Vinci” foi o “Guerra dos Tronos” da Geração Y, em função de sua trama policial ligeira e malabarismos históricos envolvendo conspirações nos altos escalões da Igreja, Templários, arte renascentista e Opus Dei. Certa vez esse aluno comentou comigo que só torcia para não morrer em nenhum acidente antes de conseguir assistir a adaptação cinematográfica do romance, depois disso tudo bem. Coitado, deve ter se decepcionado! Pelo menos, até onde sei, ele ainda está vivo e se casou com uma colega de faculdade. Que sejam felizes para sempre.
Importante destacar que esse aluno não tinha nada de tolo. Pelo contrário, era um dos mais sagazes e inteligentes da turma. Era cínico, irônico e com muita personalidade. Nada disso o blindou de levar a sério o picareta Dan Brown (aliás, Martin é muito melhor que Brown). Sei que depois das obras completas de Brown ele se dedicou, com igual entusiasmo, a leitura da trilogia “A Bússola Dourada”, de Philip Pullman. Passou de fantasia histórica policial para ficção científica de fantasia. Novamente a pergunta: qual o problema? A resposta continua a mesma.
Justamente essa é a questão: os jovens inteligentes que antes liam, digamos, Lobato, Júlio Verne ou Jack London e depois passavam para Kafka e Aldous Huxley, tendendo potencialmente a chegar em Proust, Thomas Mann e Borges e daí se aventurarem em autores contemporâneos como Philip Roth e Alan Pauls, diminuíram drasticamente. Os jovens leitores de poesia estão quase extintos. A garotada mais escreve do que lê poesia, o que é uma ironia curiosa. Esse desinteresse se repete quanto à literatura brasileira, exceção, claro, dos livros de fantasia nacionais, que experimentaram um boom nos últimos anos (o que é bom em termos editoriais). E a roda viva segue.
Fascinados pela violência brutal, sexo e intrigas políticas de “Guerra dos Tronos”, muitos jovens inteligentes não estão dando os passos seguintes. Estagnam-se na fase “fantasia adulta”, sem perceberem que Martin é um tipo de Júlio Verne dois ponto zero. Claro que sempre vão existir exceções. Se você é uma delas, fã de “Guerra dos Tronos” que está me odiando agora, saiba que estamos do mesmo lado, talvez demore, mas um dia você vai entender. Mas se você não é uma exceção, então vou buscar reforços.
O crítico literário norte-americano Harold Bloom, indagado se “livros como os da série Harry Potter não são uma boa porta de entrada, um meio de despertar nas crianças o interesse pela literatura?”, respondeu: “Acho que não (…). E um dos piores escritores da América, Stephen King (…) confirmou minhas suspeitas, numa resenha que escreveu para o jornal ‘The New York Times’. Segundo ele, as crianças que aos 12 anos estão lendo Potter, aos 16 estarão prontas para ler os seus livros. Preciso dizer mais? (…) Li apenas uma das obras dessa autora (Rowling). A linguagem é um horror! Ninguém, por exemplo, ‘caminha’ no livro. Os personagens vão ‘esticar as pernas’, o que é obviamente um clichê. E o livro inteiro é assim, escrito com frases desgastadas (…). A defesa de livros ruins como esses, que vem de todos os lados — dos pais, das crianças, da mídia — é muito inquietante e nem um pouco saudável”. Troquemos King por Martin e a palavra “ruins” por “medianos” e temos exatamente meu ponto.
Vou ilustrá-lo com um exemplo nerd. Num episódio da sexta temporada de “A Teoria do Big Bang”, Sheldon se vê obrigado a ir assistir Penny atuar numa montagem de “Um Bonde Chamado Desejo”, de Tennessee Williams, um dos maiores clássicos da dramaturgia norte-americana. O físico texano conhece a topografia e as línguas da Terra Média, a composição química da Kriptonita e os nomes de todos os morcegos que habitam a Batcaverna, mas não demonstrou nenhuma paciência com o texto ao mesmo tempo realista e poético da peça. Só queria ver o bonde que aparece no título. Portanto, não se trata de uma questão de inteligência, mas de maturidade. É inegável que Sheldon é brilhante; é louco, mas é brilhante. E extremamente imaturo. Tente convencê-lo de que “Um Bonde Chamado Desejo” é esteticamente superior às aventuras de Flash, Aquaman e “Guerra dos Tronos”, programa tão amado por ele que dividiu com seu amigo Leonard a compra da réplica de uma espada da série em tamanho real.
Nelson Rodrigues aconselhou aos jovens que envelhecessem. Não é para tanto. Aproveitem a juventude e a estendam o máximo possível, mas não se esqueçam de que a resposta para a vida, o universo e tudo mais é mesmo 42, mas a pergunta não está necessariamente nas páginas de “Guerra dos Tronos”.

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